I. Movimento feminista e mídia -
uma relação complicada
No tratamento com os meios de comunicação,
prevaleceu até há pouco tempo no movimento feminista brasileiro, uma
relação amadorística. Nenhuma política específica norteou nossa ação
junto à mídia. Lidamos com ela, como se estivéssemos dentro de um
campo em que as regras do jogo obedecessem à mesma lógica; como se o
que consideramos importante em termos de propostas e acentos fosse também
o mais interessante a ser comunicado, e da forma como o comunicamos.
Algumas ações exemplares, nos últimos
anos, mostram a necessidade e as vantagens de se operar com mais
qualidade nesse campo. Assessoradas tecnicamente pos especialistas da área,
afinadas com os objetivos do movimento de mulheres, a Comissão de
Cidadania e Reprodução, em 1993 e o CFÊMEA, em 1995 e 1996,
conseguiram trabalhar a opinião pública nacional, acionando os
recursos da mídia, de maneira eficaz. Certamente, outros grupos no
Brasil, desenvolveram com êxito, experiências semelhantes a essas. A
capacidade dos meios de comunicação de massa de fazer ecoar idéias na
sociedade, de criar fatos e levar à sua discussão é uma realidade que
não se pode ignorar, quando se quer alcançar mudanças sociais que
permitam o exercício pleno da cidadania e se luta por justiça social.
A atuação junto à mídia exige a
proposição, em nossas entidades feministas, de uma política dirigida
específicamente a esse objetivo. Alguns elementos dessa política podem
ser elencados:
. clareza de objetivos
. adequação à forma de operação
da mídia
. preparo técnico de nossa parte e
assessoria especializada
. desenvolvimento de estratégias de
intervenção permanente e
propositiva,
além de intervenções pontuais e reativas
. monitoramento dos MCM quanto a questões
de nosso interesse
. atenção à forma como o gênero
atravessa os temas abordados
O próximo VIII Encontro da Rede
Feminista apresenta-se como um momento privilegiado para marcar uma nova
relação nossa com a mídia, através do desenvolvimento de um projeto
específico de priorização e investimento nessa área.
Esta é, certamente, uma tarefa difícil,
não só por causa de nossa defasagem no tratamento com a mídia, mas
também devido à forma como as relações de gênero modelam o trabalho
dos especialistas na área. Um recente estudo (1) sobre a cobertura da
última visita papal aos Estados Unidos (30.09 a 09.10.1995),
encomendado e patrocinado por Catholics for a Free Choice, revelava a
exclusão da voz das mulheres. De 231 textos dos mais diversos tipos,
coletados em 12 dos mais importantes jornais de New York City, Newark e
Baltimore, as três cidades em que o Papa esteve, 79% dos especialistas
citados eram homens, apesar de haver inúmeras teólogas, ativistas católicas,
religiosas que seriam também importante fonte de informação sobre a
Igreja. A maioria das citações registradas foi de homens: 64%. As
mulheres receberam menos do que 1/3 (31%) de um total de cerca de 800
menções, comentários e citações, da cobertura da viagem do Papa
examinada. Esse número cai para 25% se se consideram apenas os jornais
de dioceses católicas, indicando um viés de gênero ainda mais
acentuado. Não foram tratadas questões eclesiais substantivas, muitas
das quais estão diretamente relacionadas com as mulheres, como o futuro
do sacerdócio, divórcio e novo casamento, contracepção, reprodução
assistida e aborto. Dos repórteres envolvidos com o acontecimento, 79%
eram homens. Não sem razão, o relatório dessa pesquisa intitula-se:
" Por homens, para homens, sobre homens" . Na apresentação
do mesmo, Catholics for a Free Choice observa: "A disparidade de
representação, em termos de gênero que esta análise revela, coloca
um sério desafio para a mídia: Como realizar uma cobertura equilibrada
de uma instituição tão dominada pelos homens como a Igreja Católica.
Duas tarefas principais apresentam-se então para a mídia: a primeira
é retratar a realidade tal qual é; e a segunda, examiná-la, em suas
causas e implicações. Na cobertura do Catolicismo, a mídia não
realiza nenhuma destas tarefas. Escritas principalmente por homens,
sobre homens, como se fossem para homens, muitas histórias sobre
acontecimentos ligados ao Papa e outras questões da Igreja, refletem
exclusivamente a hierarquia masculina da mesma. Esta negação das vozes
das mulheres será tanto maior quanto mais a agenda dos hierarcas da
Igreja continue intocada."
II. Aborto: O que temos a dizer á
mídia?
Em recente seminário internacional
sobre aborto, realizado na Holanda, Janet Hadley propôs um instigante
paper intitulado " The 'Awfulisation' of Abortion" (2).
Segundo a autora, o acento do discurso feminista sobre as questões de
saúde relacionadas com as práticas abortivas das mulheres, conduziu a
uma despolitização do discurso sobre o aborto. Bandeiras tradicionais
do movimento, como a liberdade reprodutiva ou a igualdade sexual,
acabaram esquecidas, na defesa do aborto seguro. A estratégia de
vinculação da necessidade do aborto unicamente à questão de saúde
das mulheres, conduziu a uma armadilha. Sob vários aspectos, há pouca,
ou nenhuma diferença entre a argumentação em defesa da liberdade de
escolha e a que condena qualquer ato abortivo. Analisando os dois
discursos, Hadley mostra que ambos apresentam o ato abortivo como um
mal, como uma escolha privada especialmente difícil, sempre uma tragédia,
último recurso de que se valem mulheres desesperadas. Prejudicial à saúde
das mulheres, jamais deveria ser utilizado como método contraceptivo.
Nos dois casos, o aborto apresenta-se como um problema moral: No
discurso pró-vida, é absolutamente inaceitável, contra a natureza
materna das mulheres; no discurso favorável à liberdade de escolha, é
um mal necessário. De qualquer forma, um mal.
Assim, ironicamente, mesmo aqueles
grupos que tentam torná-lo socialmente aceitável, usam muitas vezes,
uma linguagem e uma argumentação que acabam por
"horrorificar" o aborto. As consequências disso são o reforço
do estigma social, da vergonha e do medo associados às práticas
abortivas. Torna-se então difícil para as mulheres partilharem suas
experiências nesse campo. Embora, em muitos casos, o aborto se
apresente para elas como a solução de um problema anterior - uma
gravidez impossível de ser levada a termo - devem falar dele como algo
trágico e lamentável. Além disso, a associação implícita entre
comportamento responsável = contracepção e comportamento irresponsável
= aborto, contribui para sustentar o mito da contracepção como algo
absolutamente seguro, sem riscos para a saúde das mulheres.
Na mesma linha, Petchesky (3) lembra
que " o que torna o aborto "horrível"
("awful") é a vergonha e a culpa causadas por duas noções
ideológicas que toda mulher ainda aprende na sociedade, em alguma
medida: 1. a associação do feto com um "bebê" e da mulher
que aborta com uma "mãe má"; 2. a assunção de que o sexo
por prazer é "errado" (para mulheres) e de que as mulheres
que incorrem nesse erro devem pagar um preço. "
Voltando à proposta de Hadley,
devemos pensar em novas estratégias. É necessário reafirmar a
capacidade das mulheres de tomarem decisões ética e moralmente válidas.
Sem trivializar o aborto, é preciso voltar a propô-lo como um direito,
como elemento inseparável de nossa luta histórica por autonomia e
igualdade. Parte essencial da liberdade sexual e reprodutiva das
mulheres, o acesso ao aborto é uma questão de respeito à nossa
dignidade como seres humanos.
Finalmente, ao tratar o aborto, na
agenda política do movimento feminista, devemos nos lembrar, com Sônia
Correa, de que " É urgente detectar e (nos) contrapor às formas múltiplas
pelas quais a agenda religiosa vem se articulando aos discursos laicos
para impedir transformações no que diz respeito ao lugar das mulheres
e á desigualdade entre os gêneros ." (4) Nesse sentido, uma atuação
planejada e eficaz junto à mídia insere-se em nossa agenda como necessária
e urgente; um novo desafio.
Notas
(1) By
Men, For Men, About Men. Media Coverage of the Visit of Pope John Paul
II to the United States in October 1995. Commissioned by Catholics for a
Free Choice; prepared by Douglas Gould & Co. March 4, 1996, mimeo.
(2) Hadley, Janet. The 'Awfulisation'
of Abortion. Texto apresentado no Congresso Internacional Abortion
Matters, Amsterdam, 27 - 29 de março, 1996, mimeo.
(3) Cit. in: Williams, Camille S.
Abortion and the Actualized Self. First Things, November, 1991, p.32.
(4) Enfoque Feminista, dez.95, nº8/9,
p.16.